18/08/2013 -
08h00 ESPECIAL
Responsável pela
estabilização da jurisprudência infraconstitucional, o Superior Tribunal de
Justiça (STJ) retomou a discussão de uma questão controversa que já foi
debatida diversas vezes em seus órgãos fracionários: a aplicação da taxa Selic
nas indenizações civis estabelecidas judicialmente.
Na prática, a
controvérsia afetada à Corte Especial pela Quarta Turma diz respeito ao artigo
406 do Código Civil (CC) de 2002, que dispõe que, quando os juros moratórios
não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem
de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para
a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.
O problema é que
existem duas correntes opostas sobre qual taxa seria essa, o que vem impedindo
um entendimento uniforme sobre a questão.
Em precedentes
relatados pela ministra Denise Arruda (REsp 830.189) e pelo ministro Francisco
Falcão (REsp 814.157), a Primeira Turma do STJ entendeu que a taxa em vigor
para o cálculo dos juros moratórios previstos no artigo 406 do CC é de 1% ao
mês, nos termos do que dispõe o artigo 161, parágrafo 1º, do Código Tributário
Nacional (CTN), sem prejuízo da incidência da correção monetária.
Em precedentes
relatados pelos ministros Teori Zavascki (REsp 710.385) e Luiz Fux (REsp
883.114), a mesma Primeira Turma decidiu que a taxa em vigor para o cálculo dos
juros moratórios previstos no artigo 406 do CC é a Selic.
A opção pela
taxa Selic tem prevalecido nas decisões proferidas pelo STJ, como no julgamento
do REsp 865.363, quando a Quarta Turma reformou o índice de atualização de
indenização por danos morais devida à sogra e aos filhos de homem morto em
atropelamento, que inicialmente seria de 1% ao mês, para adotar a correção pela
Selic.
Também no REsp
938.564, a Turma aplicou a Selic à indenização por danos materiais e morais
devida a um homem que perdeu a esposa em acidente fatal ocorrido em hotel onde
passavam lua de mel.
Caso afetado
No caso
específico (REsp 1.081.149) afetado à Corte Especial e relatado pelo ministro
Luis Felipe Salomão, uma mulher ajuizou ação declaratória de inexistência de
dívida com pedido de indenização por dano moral, contra a Companhia
Securitizadora de Créditos Financeiros Gomes Freitas.
Segundo os
autos, a autora teve seus documentos pessoais falsificados, registrou boletim
de ocorrência policial e cautelarmente incluiu nos cadastros da Câmara de
Dirigentes Lojistas (CDL) a informação "documento clonado", ao lado
de seu nome. Mesmo assim, a empresa determinou a inscrição de seu nome em
cadastros de inadimplentes, em razão de dívida contraída por terceiros
valendo-se da documentação falsificada.
O juízo de
direito da 14ª Vara Cível da Comarca de Porto Alegre julgou os pedidos
procedentes. Reconheceu a inexistência da dívida, determinou o cancelamento da
inscrição indevida e condenou a companhia ao pagamento de indenização por danos
morais no valor de R$ 3.800, atualizada pelo IGP-M e juros de 12% ao ano.
Em grau de
apelação, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul deu parcial provimento ao
recurso da autora para elevar a indenização a R$ 7 mil, fazendo incidir
correção monetária e juros moratórios somente a partir da data daquele
arbitramento.
A autora
recorreu ao STJ, sustentando que os juros moratórios e a correção monetária
advindos de relação extracontratual devem incidir a partir do evento danoso
(Súmulas 43 e 54 do STJ) e não do arbitramento da indenização.
O julgamento do
recurso foi interrompido por pedido de vista antecipada formulado pelo ministro
João Otávio de Noronha. Ele entende que a questão deve ser previamente
analisada pela Segunda Seção – especializada em direito privado – e não
diretamente pela Corte Especial.
Oportunidade
Para o ministro
Luis Felipe Salomão, o julgamento desse caso é a oportunidade para o STJ
consolidar entendimentos sobre a incidência da taxa de juros moratórios em
dívidas civis (artigo 406 do CC), o momento inicial para sua fluência e a exata
delimitação do que seja responsabilidade contratual e extracontratual para
efeitos de incidência de juros e correção monetária. Para ele, é importante
adequar os verbetes sumulares e os precedentes da Corte.
A jurisprudência
do marco inicial de incidência dos juros moratórios em responsabilidade
extracontratual já está pacificada pela Súmula 54, que determina: "Os
juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade
extracontratual."
A incidência de
correção monetária na indenização por danos morais está pacificada pela Súmula
362: "A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide
desde a data do arbitramento."
Isso significa
que os juros moratórios e a correção monetária decorrentes de responsabilidade
extracontratual fluem a partir de momentos diversos – os juros moratórios a
partir do evento danoso, e a correção monetária, em caso de dano moral, a
partir do arbitramento do valor da indenização.
No caso de
responsabilidade civil contratual, a jurisprudência determina a incidência de
juros a partir da citação ou do vencimento da dívida, conforme inúmeros
precedentes julgados pela Corte Superior, entre eles o REsp 1.257.846, relatado
pelo ministro Sidnei Beneti, e o REsp 1.078.753, relatado pelo ministro João
Otávio de Noronha.
Controvérsia
A controvérsia
que ainda não foi harmonizada pelo STJ não envolve o momento, mas o percentual
que deve ser aplicado para efeito de correção da dívida. Em embargos relatados
pelo ministro Teori Zavascki (EREsp 727.842), a Corte Especial firmou
orientação no sentido de que "atualmente, a taxa dos juros moratórios a
que se refere artigo 406 do CC é a taxa referencial do Sistema Especial de
Liquidação e Custódia (Selic), por ser ela a que incide como juros moratórios
dos tributos federais".
Posteriormente,
também ficou consignado que "apesar de a Selic englobar juros moratórios e
correção monetária, não se verificabis in idem, pois sua aplicação é
condicionada à não-incidência de quaisquer outros índices de correção
monetária".
E é justamente
nesse contexto que gira a controvérsia. Para o ministro Luis Felipe Salomão, já
que a taxa Selic engloba juros moratórios e correção monetária em sua formação,
sua incidência em dívidas civis pressupõe a fluência simultânea de juros e correção,
fato que não ocorre em indenizações civis (Súmulas 54 e 362).
Assim, defende o
ministro, é necessário harmonizar a aplicação da Selic com as Súmulas 54 e 362
do STJ, que estabelecem a contagem de juros e de correção monetária em períodos
distintos.
Tese
Luis Felipe
Salomão reconhece que a taxa em vigor para a mora do pagamento de impostos
devidos à Fazenda Nacional é a Selic, mas entende que sua aplicação em dívidas
civis não constitui “diretriz peremptória incontornável prevista no Código
Civil”, sendo apenas um parâmetro a ser adotado na falta de outro específico
previsto para determinada relação jurídica, como, por exemplo, o que há para
dívidas condominiais (artigo 1.335, parágrafo 1º, do CC).
“Não obstante,
parece claro que o artigo 406 do CC não encerra preceito de caráter cogente,
tanto é assim que confere prevalência às estipulações contratuais acerca dos
juros moratórios (‘quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o
forem sem taxa estipulada’) e a estipulações legais específicas, deixando
expressa a subsidiariedade da incidência dessa taxa”, ressalta o ministro.
Mesmo
discordando da aplicação da Selic em indenizações civis, ele consignou em seu
voto ter aplicado tal entendimento em julgamento ocorrido na Segunda Seção para
evitar o “pernicioso dissídio jurisprudencial interno”, mas ressalvou sua
posição contrária à “aplicação indiscriminada da Selic”.
Proposta
Com base no
Enunciado 20, aprovado na I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da
Justiça Federal em setembro de 2002, o ministro propõe que o STJ adote a
utilização de índice oficial de correção monetária ou tabela do próprio
tribunal local, somado à taxa de juros de 1% ao mês (ou 12% ao ano), nos termos
do artigo 161 do Código Tributário Nacional (CTN).
O referido
enunciado dispõe que “a taxa de juros moratórios a que se refere o artigo 406 é
a do artigo 161, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, 1% ao
mês”.
O mesmo
enunciado, que possui caráter orientador da interpretação dos artigos, dispõe
que a utilização da taxa Selic como índice de apuração dos juros legais não é
juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é
operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente
juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do artigo 591
do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e
pode ser incompatível com o artigo 192, parágrafo 3º, da Constituição Federal,
se resultarem juros reais superiores a 12% ao ano.
“Independentemente
de questionamento acerca do acerto ou desacerto da adoção da Selic como taxa de
juros a que se refere o artigo 406 do Código Civil, o fato é que sua incidência
se torna impraticável em situação como a dos autos, em que os juros moratórios
fluem a partir do evento danoso (Súmula 54) e a correção monetária em momento
posterior (Súmula 362)”, destaca o ministro em seu voto.
Oscilação
anárquica
Para o relator
do recurso afetado à Corte Especial, é exatamente pelo fato de englobar em sua
formação tanto remuneração quanto correção, que a Selic não reflete, com
perfeição e justiça, o somatório de juros moratórios e a real depreciação da
moeda – que a correção monetária visa recompor pelos índices de inflação medida
em determinado período.
“A Selic não é
um espelho do mercado; é taxa criada e reconhecida com forte componente
político – e não exclusivamente técnico –, que interfere na inflação para o
futuro, ao invés de refleti-la, com vistas na economia de um período anterior e
na projeção para os próximos meses, em consonância também com as metas
governamentais”, entende Salomão.
Para balizar sua
proposta, o ministro incluiu em seu voto um minucioso estudo sobre a taxa de
juros paga com a utilização da Selic desde 2003 e constatou que sua adoção na
atualização de dívidas judiciais conduz a uma oscilação anárquica dos juros
efetivamente pagos pela mora.
“Constata-se,
por exemplo, o pagamento de juros a 12,31% ao ano em 2005, contra o irrisório
1,30% ao ano em 2012, períodos em que a inflação foi praticamente idêntica
(5,69% e 5,84% a.a.), respectivamente”, analisou o relator.
Para ele, a
adoção da Selic para efeitos de pagamento tanto de correção monetária quanto de
juros moratórios pode conduzir a situações extremas: por um lado, de
enriquecimento sem causa ou, por outro, de incentivo à litigância habitual,
recalcitrância recursal e desmotivação para soluções alternativas de conflito,
ciente o devedor de que sua mora não acarretará grandes consequências
patrimoniais.
“Aliás, como as
dívidas judiciais são atualizadas mensalmente, e não anualmente, há registros
de meses em que a Selic ficou abaixo de índices oficiais que medem
exclusivamente a inflação, o que significa juros negativos e que, em boa
verdade, nesse período, foi o credor que pagou juros ao devedor, o que não se
sustenta”, ressaltou o ministro em seu voto.
Para Luis Felipe
Salomão, a adoção da Selic na relação de direito público alusiva a créditos
tributários ou a dívidas fazendárias é inquestionável, mas não há motivos para
transpor esse entendimento para relações puramente privadas, nas quais se faz
necessário o cômputo justo e seguro de correção monetária e juros moratórios,
“atribuição essa que, efetivamente, a Selic não desempenha bem”.
Voto
No caso afetado
à Corte Especial, o ministro relator deu parcial provimento ao recurso especial
para descartar a incidência da correção monetária a partir da inscrição
indevida. Também consignou que a indenização por danos morais, para efeito de
incidência de juros de mora, deve ser considerada sempre responsabilidade
extracontratual – “até porque, no caso concreto, a ausência de contrato entre a
autora e a instituição financeira foi exatamente o que justificou a propositura
da ação”.
Assim, entendeu
o ministro, deve ser aplicada a Súmula 54 do STJ, com os juros moratórios
fluindo a partir do evento danoso.
Em relação à
correção monetária, Salomão sustentou que a mesma deve incidir a partir do
arbitramento da indenização em grau de apelação (Súmula 362), ao contrário do
que propõe a recorrente, que busca a contagem também desde a inscrição
indevida. O índice de correção será o da tabela adotada pelo tribunal de
origem, desde que oficial.
O julgamento foi interrompido por
pedido de vista logo após a apresentação do voto, de forma que nenhum ministro
votou após o relator. Não há data para retomada da discussão.